quarta-feira, 17 de julho de 2013

O voo do pássaro


Eu caminhava pela rua de manhã quando ouvi um miado, não, não era um miado, era um canto bem agudo de pássaro. Era um canto suave, um canto que ressoava no infinito, um canto que fazia parar para ouvir até o mais insensível homem. Não era um canto tão bonito assim e eu nem sei de que pássaro era aquela “voz”. Não paro muito para ouvir os pássaros, tenho andado muito distraído ultimamente e isso me assusta, não posso parar de conversar com a irmã natureza.

Eu parei, olhei para o céu e vi que o sol estava se pondo. Ouvi novamente aquele som agudo, que às vezes chegava a irritar um pouquinho, mas tinha sua beleza inata. Uma beleza que nem todos conseguem lisonjear. Ele cantou de novo e dessa vez sem parar e foi quando que parou de ser irritante para mim, comecei a entender o que aquele canto queria dizer. 

Olhei na direção de onde aquela onda sonora vinha e avistei na fiação da rua, que estava um pouco velha e com um fio quebrado e consegui enxergar um passarinho meio que acinzentado ou marrom em um dos fios. Ele não era o mais belo dos pássaros a primeira vista, nem tinha penas tão glamorosas assim. 

Como que se em um relance, percebi que ele olhou para mim e cantou, cantou mais ainda, como que se quisesse me dizer algo. Olhei para trás e vi que havia um belo gato, de pelos negros, sentado como um príncipe na sarjeta. Para mim, os gatos são reis e príncipes que caminham sobre os telhados da cidade. Passei a perceber agora os traços do gato. Era um olhar místico, um olhar profundo, dotado de uma imensidão inexplorável. Talvez os gatos também se comunicassem através daqueles olhos de vidro. Aquelas curvas que pareciam ser desenhadas por Afrodite era como as curvas desenhadas por um desenhista profissional. Talvez aquele fosse o gato do Mundo das ideias de Platão. Era um gato com traços perfeitos, ou quase perfeitos. Aqueles pelos pretos reluziam como se fossem uma pérola negra, eram limpos como o vestido de cetim de uma senhora. Ele contorcia o rabo como se fosse uma naja, era como se a calda fosse dotada de vida própria e, como uma cobra, estivesse se preparando para dar o bote. Foi neste momento que percebi o que estava acontecendo: fiquei indignado! Aquele belo animal estava apenas admirando a sua presa inalcançável! Mas como? Aquele pássaro não podia ser comido! Com um canto tão belo! Aquele pássaro era inocente! Por que morrer de uma morte tão cruel e sangrenta? Morrer por entre os dentes de um gato deveria ser muito doloroso. E eu, eu que gosto tanto de um gato, olhá-lo comendo aquele pequeno pássaro para mim seria uma dor. Mas eu já o vira comendo outros animais, como calangos e lagartixas. Foi quando também percebi minha mediocridade e egoísmo! Que valor a menos uma lagartixa teria que me faria sentir menos penas dela? Só porque ela não cantava pela manhã para me acordar alegre? Só porque ela não voava? Como sou um idiota!  Agora vejo o quanto sou fútil e artificial!

Lembrei que, nos anos áureos de minha infância, gostava de assistir canais que mostrassem animais reais, não desenhos, mas animais na savana africana. Eu possuía também uma fita cassete intitulada "Felinos". Talvez venha daí meu amor por gatos. Lembro que eu sentia uma amargura intensa e uma inquietação sem tamanho ao ver aqueles leopardos atacarem com seus ferozes dentes os pescoços daqueles pobres e belos animais, eu não queria que eles morressem, eu admirava os felinos, mas aquele lado deles me entristecia. Até que um dia eu parei de assistir. Era difícil para uma pobre criança ver um animal tão belo matando uma pobre gazela, ainda mais se fosse um filhote. Ver aquela mãe desesperada chorando por seu filho que agora era almoço de felinos era uma dor sem fim!

Mas a natureza é assim. Adoro ver imagens da Natureza e desbravá-la, mesmo que em pensamento nos meus momentos de devaneios e fuga deste mundo. Mas agora, eu também me entristeço pelas dezenas de morte de lagartixas que vi e nem me importei, agora que vi como realmente elas também sofreram! Mas os animais são tão belos, ainda mais os felinos, que tanto me atraem. Como estes seres soberanos podem ser tão sanguinários? Nós seres humanos também o somos! Nós os assassinamos em enormes escalas para extermínio coletivo nos frigoríficos. Isto me lembra dos campos de concentração onde os judeus eram mortos. Somos todos Hitler. Somos todos assassinos! Mas e os animais da floresta? Eles também o são?

Talvez eu seja muito fraco para tentar enxergar este lado da natureza. Como poderei eu, um assassino hipócrita que sou, entender que para a vida continuar existindo, a morte tenha sempre que fazer presença? É um tanto paradoxal, mas eu me contorço em indignação.

Nós também morremos, nós mesmos nos matamos, ou melhor, aceleramos nossa morte, mesmo que tentemos evitá-la, cuidando de nossa saúde, de uma forma ou de outra damos um jeito de nos aproximar a morte.

A beleza de um felino me encanta. A soberania de um leão me faz reverenciar diante de tanta maestria. Só que este lado de nós, animais assassinos, me entristece um pouco. Eu sou um hipócrita! Falo tão assustado assim, mas me saboreio diante de um estrogonofe de frango e de um hambúrguer! Como um Deus perfeito, nos dotaria da morte para continuar a vida? Como pôde criar tão bela natureza e a capacitar com a escuridão do assassinato? A morte era necessária à vida?

Mas se o gato não comesse o pássaro e tantas outras lagartixas, ele também não existiria, eu nunca poderia ter me admirado com os leopardos e leões da minha infância! Eu não poderia ter me alegrado com suas corridas pelos campos amarelos. Eu também não teria me indignado! Admiração e espanto, vida e morte! Por que vocês têm que andar juntas? Mas se apenas uma das duas existisse, eu nunca haveria de saber se era feliz ou triste!

Eu deveria tentar amar mais o que é escandalizador e feio também! Talvez eu devesse amar aquilo que me apavora e me assusta. Amar aquilo que trazia espanto! O gato, neste ponto de vista, também era tão terrível e cruel, mas era belo, e ver um gato correr atrás de um pássaro era lindo, e aquele voo da vida era triunfal e muitas vezes único para aquele pássaro. Talvez um doasse beleza ao outro! Eu deveria tentar amar mais a morte, entender que esta “lei de morte” também é bela! O belo pássaro cantador não pede para ter seu fino pescoço estraçalhado pelos apontados dentes um gato, mas talvez Aristóteles esteja certo e tudo nesta vida tenha uma finalidade própria. Como se a "substância" de cada ser, no sentido aristotélico de se dizer, possuísse uma finalidade e motivo de ser. Talvez aquele pássaro devesse mesmo ser morto pelo gato, e talvez as gazelas devessem mesmo ser perfuradas pelas pontudas lanças dos leopardos. Talvez a morte seja mesmo nossa mãe e dê procedência à vida.

Apolo Pensador - Dayvid Fernandes

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